Um piano dentro de um barco nas águas amazônicas pode parecer algo distante da realidade, mas a artista Carla Ruaro concretizou este feito em 2017 e está realizando novamente. No dia 24 de Setembro iniciou a segunda edição do “Um Piano na Amazônia”, pelo Rio Amazonas, projeto idealizado com o intuito de estabelecer conexões e trocas culturais com comunidades ribeirinhas. O trajeto, que teve início em Santarém, passou por aproximadamente 15 comunidades ao longo do rio, que receberam a embarcação com o imponente instrumento – além das apresentações, o público local pôde participar de oficinas e sentir na prática o som de compositores da região amazônida. Nesta última semana, em Manaus, a equipe se prepara para a fase final do projeto com ensaios para a grande apresentação no dia 18, no Teatro Amazonas, a convite da Orquestra de Violões do Amazonas. A bela parceria entre a Orquestra e a pianista Carla Ruaro resultará num repertório unicamente de compositores amazônicos. Os ingressos podem ser adquiridos aqui.
O projeto parte de um sonho audacioso de Carla de levar um piano para comunidades remotas – muitas das quais nunca viram um piano antes. A artista espera que, indo à fonte dos compositores e dos sons que inspiram seu trabalho, ela possa encontrar um novo sentido de realização criativa e conexão. E, ao fazer isso, talvez ela também possa se tornar uma fonte de inspiração para artistas ao redor do mundo perseguirem seus sonhos mais ousados.
“Desta vez seguimos viagem pelo rio Amazonas, levando novamente o piano para mais comunidades ribeirinhas, apresentando músicas de grande valor cultural de compositores dos estados do Pará e Amazonas, por onde o barco vai passar. Quero que o piano seja não só um instrumento musical, mas que também tenha um impacto de transformação na vida das pessoas, assim como foi com a minha. Acho relevante levar a arte produzida na Amazônia para comunidades remotas, tão importante fonte de inspiração para muitos compositores amazônidas.”
Primeira Edição
Em 2017, de forma independente, a pianista Carla Ruaro reuniu uma equipe de profissionais que aceitou a parceria e, juntos, partiram para seu primeiro desafio: içar o piano ao interior de um barco e percorrer o rio Arapiuns, no estado do Pará, dentro da reserva extrativista Tapajós-Arapiuns. Da aquisição e transporte do instrumento às oficinas e apresentações para as comunidades ribeirinhas, o projeto articulou ainda uma enorme gama de ações que fortalecem os laços locais e a autovalorização de comunidades e artistas, ao se verem sinceramente representadas pelo interesse e esforço da intérprete e sua equipe.
No interior da embarcação foram realizadas oficinas e concertos de piano, atendendo mais de 1000 crianças. Os concertos ocorreram à noite, na beira do rio nas comunidades de Vila Franca, Tucumã, São Pedro, Mentai, Curi, Bom Futuro, São Francisco, Atodi, Vila Gorete, Vila Brasil, Lago da Praia, Urucureá e Alter do Chão.
O projeto piloto “Raízes – Um Piano na Amazônia” iniciou com uma extensa pesquisa sobre os compositores contemporâneos e a cultura da região amazônica. Aproximando-se dos ambientes nos quais se inspiram, vivem ou viveram os compositores, o projeto afirma o propósito de imersão, propondo-se à investigação in loco das raízes dessa música.
O curta “Raízes – Um Piano na Amazônia” foi lançado em 2018 e conquistou diversos prêmios no Brasil, Europa, USA e Marrocos.
Carla Ruaro
Carla Ruaro começou a estudar piano aos seis anos. Não demorou muito para que ela conseguisse tocar algumas das composições mais importantes da música clássica. No entanto, Carla começou a se sentir limitada. A música clássica, especialmente ao tocar repertórios tradicionais, muitas vezes envolve recriar versões do passado – e cada apresentação subsequente é sempre comparada às versões anteriores. A insatisfação de Carla com os confinamentos sufocantes do mundo da música clássica a levou a abandonar tudo o que havia trabalhado até então, inclusive seu prestigioso programa de doutorado, em busca de respostas na Amazônia.
A mente de Carla saltou para uma ideia encantadora – tirar o seu piano dos espaços seguros das salas de concerto e das grandes cidades e fazer uma peregrinação musical – levar um piano de barco – o instrumento tão enraizado em prestigiosos teatros, com tanta história e importância – pelos rios da Amazônia. Assim nasceu “Raízes – Um Piano na Amazônia” e a odisseia de piano de Carla, que levou três pianos, três barcos e 40 dias para ser realizada.
ENTREVISTA SOBRE “UM PIANO NA AMAZÔNIA”:
Perguntas e respostas da pianista Carla Ruaro, produtora do projeto, e da cantora/compositora Tatiana Cobbett, diretora artística:
1 – É a segunda expedição que vocês realizam, com o piano em um barco. Como foi a experiência, em 2024?
Tatiana Cobbett – De 2017 para 2024 foi um longo caminho para conseguir voltar e completar o circuito. Em 2017, estivemos no Pará ( Amazônia Oriental) e agora estamos percorrendo as comunidades ribeirinhas do Amazonas ( Amazônia Ocidental). Neste tempo, tivemos uma epidemia devastadora e um governo que foi especialmente difícil para o setor cultural. Estamos em trânsito e, neste sentido, ainda não temos como avaliar a experiência, mas entendemos que o Projeto propõe uma jornada, pensando e experimentando a arte/música como um instrumento de sensibilização e reflexão e que cada comunidade é um ato de inspiração, conexão, aprendizado e auto-reconhecimento, de ambos os lados.
2 – Por que vocês resolveram repetir a experiência?
Carla Ruaro – Desde sempre a intenção era fazer este trajeto Pará – Amazonas, inúmeros motivos não nos permitiram cumprir, da primeira vez.
3- Com “Raízes – Um Piano na Amazônia”, vieram muitos prêmios, em diversos festivais internacionais de cinema. Qual é a expectativa, com a segunda expedição?
Carla Ruaro – Parece mentira, mas não temos expectativas definidas quanto a isso. O que temos é a certeza de que a arte é uma manifestação genuína do humano e um instrumento que, naturalmente, provoca empatia e estimula a consciência. Então, procurar chegar mais perto é, no fundo, aprender mais do que ensinar .
4- Para a realização da expedição, foram reunidos profissionais de outros países, que vieram para o Brasil exclusivamente para o projeto. Como foi essa troca?
Tatiana Cobbett – Na nossa equipe, embora cada um venha de um lado, somos todos brasileiros. Num projeto desta natureza, com tantos dias envolvidos e galgando o desconhecido ou pouco conhecido , consideramos a escolha da “Equipe” um ponto de extrema importância. Linguagens e formações distintas num cotidiano de entrega, de troca de saberes é exercício diário para encontrar consenso e harmonia né? Então taí que neste quesito, fizemos um golaço! Uhuuu!!!
5- As duas edições do projeto “Um Piano na Amazônia” chamam a atenção para a diversidade cultural da região Amazônica. Qual é o significado desse projeto na trajetória artística de vocês?
Tatiana Cobbett – A pluralidade é um traço autêntico da nossa Nação. Um poeta já afirmou: “O Brasil não conhece o Brasil”. Contudo, na nossa primeira viagem, quando exploramos a região do Tapajós/Arapiuns no Pará, identificamos mais expressões autênticas nas comunidades que visitamos, como dança, cantos, lendas, entre outros. Nesta segunda viagem, observamos uma certa massificação. Percorremos cidades maiores, com acesso a tecnologias, e, de alguma maneira, o genuíno não é tão apreciado, a desqualificação é mais acentuada do que a valorização do autêntico.
Carla Ruaro – Ainda temos muito a ponderar, especialmente porque também temos descoberto focos férteis de resistência, o que intensifica a relevância de projetos que possam compartilhar e consolidar nossa identidade como artistas e cidadãs.